domingo, 6 de novembro de 2011

Berlim: entulho e cinzas

por Prof. Dr. José Pedro Antunes
Unesp - Araraquara

Para acompanhar a leitura de “Guerra Aérea e Literatura”, de W. G. Sebald (Cia. das Letras, 2011), percorro algumas séries de fotos de Berlim (abril/maio, 1945) que a revista Der Spiegel on-line disponibiliza. Já no título de uma delas, “Berlin in Schutt und Asche”, duas palavras do vocabulário da literatura do pós-guerra: entulho e cinzas. Para escorar seu desconforto, esses autores, ex-combatentes, buscaram uma zona de conforto, digamos assim, numa sintaxe cristalizada, elegendo um modelo preferencial: o realismo do século XIX. Sem atentar para seus equívocos de base. Ou, como quer Peter Handke, a combater o mal com a mesma linguagem que o produziu.
Foto 1: (2 de maio, capitulação da cidade): o que restou do Reichstag. (O número 7 da Coleção Folha Grandes Arquitetos, dedicado ao autor do projeto, Norman Foster, traz belas fotos do edifício, hoje, restaurado e ampliado.)

Foto 2 (abril/maio): o soldado russo observa, cruz de ferro no peito, o corpo de um alemão que tombara em combate no centro da cidade.

Foto 3: no texto que a acompanha, um outro verbete dos debates do pós-guerra: “Trümmer” (escombros). Daí, “Trümmerstadt” (cidade de escombros) ou “Trümmerliteratur” (literatura de escombros). E, claro, “Trümmerfrauen” (mulheres de escombros). Quem já não as terá visto em fotos ou filmes americanos da época? Em “Ilusão Perdida”, o piloto americano (Montgomery Cliff), engajado no abastecimento do setor ocidental sitiado, se apaixona na por uma delas. Vale lembrar que o termo “Luftbrücke” (ponte aérea) foi cunhado para designar as operações dos pilotos americanos, tendo se perpetuado no vocabulário da aeronáutica. Na falta absoluta de homens em idade produtiva, mutirões de mulheres empreenderam as tarefas da reconstrução, antecipando-se, por força das circunstâncias, à emancipação defendida pelo feminismo programático de duas décadas depois.

Foto 4 (anterior a 23 de maio): pessoas buscam passagem por entre os montes de entulho que inviabilizam a Stallschreiberstrasse. De onde terão saído e para onde seguiriam em meio à urbe devastada?

Foto 5: a Potsdammerbrücke arruinada. (A ponte que tantas vezes atravessei em janeiro de 1994. Ali perto, a editora Langenscheidt, um nome que rebrilha amarelo-ovo na memória afetiva do germanista brasileiro, por conta do dicionário, que, há décadas, solitário, heróico, lhe oferece luzes e alguns problemas com os usos lusitanos.) Numa das pontes adiante, idêntica, Wim Wenders filmou a sequência de “Asas do Desejo”, na qual os protagonistas, anjos, assistem um homem à morte depois de um acidente.

Foto 6: por volta do dia 9 de maio, o Spittelmarkt ainda fumegante, a cidade marcada pelos ataques aéreos dos aliados.
Foto 7: a história contada pelos vitoriosos. Difícil saber o que realmente achavam ter conquistado, mas os soldados russos elegeram como pano de fundo, para o seu júbilo viril, a Siegessäule (Coluna da Vitória), hoje amplamente conhecida como símbolo da comunidade gay berlinense.

Foto 8: as ruínas da Neue Reichskanzlei, símbolo de poder transformado em símbolo da derrocada.

Fotos 9 e 10: a cidade arrasada, tal como foi vista por aqueles que, dias depois, criaram coragem para sair dos porões e abrigos subterrâneos, onde se amontoaram, como ratazanas acuadas, por semanas intermináveis. Ao sair, temiam os soldados soviéticos, que, nos dias que se seguiram, passaram a abastecê-los com alimentos.



Com o título em alemão, acima mencionado, o leitor interessado encontrará acesso a esta e a outras séries de fotos do período. Em “Guerra Aérea e Literatura”, W. G. Sebald realiza a tarefa da qual, como ele denuncia, a literatura alemã do pós-guerra terá se mostrado incapaz: conferir materialidade à destruição total de grande parte das cidades alemãs e revelar a exata dimensão do horror, do ensandecimento vivido pelos sobreviventes. Assunto para uma resenha mais adiante.   

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