sexta-feira, 23 de março de 2012

Dicção Poética: um estudo sobre o significado por Owen Barfield

Comecei esses dias a tradução de Poetic Diction: A Study in Meaning de Owen Barfield, frequentador eventual do grupo dos Inklings e cujas ideias eram manifestadamente admiradas por ninguém menos que J. R. R. Tolkien. O livro é dedicado à C. S. Lewis que era, na verdade, a figura carismática em torno da qual se reunia o grupo. A obra de Barfield, além dos estudos sobre o significado e da dicção poética, também se volta à origem da linguagem e conta com estudos sobre autores específicos. Que eu saiba, não há nenhuma obra dele traduzida para o português, aliás, as únicas contribuições teóricas dos Inklings - que, aliás, seriam valiosíssimas em nosso meio acadêmico - traduzidas para o português no Brasil é o ensaio "Sobre Histórias de Fadas" de J. R. R. Tolkien e o breve ensaio "Três maneiras de escrever para crianças" de C. S. Lewis. Há ainda uma obra muito interessante intitulada A Experiência de Ler, também de C. S. Lewis, traduzida em Portugal. O que segue é o prefácio à edição estadunidense de Poetic Diction, escrita por Howard Nemerov. Se tudo der certo, pretendo terminar a tradução  do livro todo até o final do semestre. A referência completa do livro, aos interessados é:


BARFIELD, Owen. Poetic Diction: a study in meaning. Middletown: Wesleyan University Press, 1973. 

***

PREFÁCIO
Esse livro surgiu na Inglaterra pela primeira vez em 1928 e lá foi reeditado em 1952, com a adição de um novo prefácio (aqui incluído), que ajudou a especificar a aplicação do argumento de seu autor às visões sobre o assunto, que naquele intervalo se tornaram mais explícitas, mais brutais, e mais impensavelmente aceitas por acadêmicos e leigos simpatizantes do que tinha previamente parecido possível.

Entre os poucos poetas e professores do meu conhecimento que conhecem Dicção Poética, ele tem sido valorizado não apenas como um livro secreto, mas quase como um livro sagrado; com um certo sentimento de que seus ensinamentos são muito apropriadamente esotéricos, não como posse de uns poucos esnobes, mas como algo que poderia facilmente falhar em ser entendido, até mesmo pelos mais estudados daqueles tolos cujas bocas se derramariam continuamente, mas cujos ouvidos só serviriam para propósitos próprios.

Não é para o prefaciador antecipar os argumentos do livro, os quais o leitor, talvez, já deve estar aprendendo de primeira mão, abandonando-me em favor de Barfield; talvez o único prefácio valioso seria um tal como eu vi em um manual de Budismo: ele disse, em verdade, se você já leu esse tanto, jogue o livro fora, ele não é para você. Mas pode ser apropriado introduzir à edição estadunidense do livro de Owen Barfield algumas reflexões sobre seu assunto, e sobre a situação dessa questão atualmente.

Parece que há dois meios principais de tomar a dicção poética como objeto de estudo. O primeiro deles é uma matéria técnica, pertencente à arte da poesia ou, mais especificamente, ao artesanato da poesia, portanto, de interesse somente aos poetas, talvez especialmente aos jovens poetas, que aprendem de acordo com suas naturezas uma certa ousadia ou um certo melindre, pertencentes ao que é possível e o que é proibido na arte, quando eles primeiro começam a praticá-la. No presente, por exemplo, o poeta em seu personagem de pescador não permitirá a si mesmo falar de peixes como “presa com barbatanas.” Ele se sentiria bobo se o fizesse, e muito apropriadamente; ele seria bobo se o fizesse.

Mas até mesmo nesse primeiro estágio, uma pequena reflexão pode levá-lo a perguntar a si mesmo, por quê, se “a presa com barbatanas” é agora impossível, proibida, fora de moda, poderia ela já ter estado em voga? Como ela poderia já ter parecido conveniente, apropriada e – em uma palavra que levanta de uma vez ainda mais questões que podem ser respondidas – natural, a qualquer poeta?

Se o poeta possui uma disposição reflexiva e inquiridora – não há garantia de que isso é poeticamente uma boa coisa para ele – ele sente muito cedo que uma questão desse tipo, se a perseguir, leva-lo-á para lugares muito estranhos e até mesmo perigosos. “Pois,” ele pode dizer para si próprio, “aqui é minha linguagem, que, todo esse tempo, eu só estive usando como se – como se – como se o quê? Por que, como se isso fosse natural, como se as palavras realmente dissessem respeito às coisas, como se as palavras fossem realmente as “almas” das coisas, suas essências ou logos, e não, de qualquer forma, os meros rótulos convencionais como elas tão frequentemente são ditas ser.

Nesse ponto, o primeiro modo de considerar a dicção poética, como um estudo da técnica, vai além em um segundo, onde o assunto se torna psicológico, metafísico, e extremamente problemático. Aqui o poeta, especialmente se ele ainda é jovem, pode achar melhor abandonar as inquirições em favor de escrever poemas, enquanto ele ainda é capaz, concordando com algo que Barfield diz em outra passagem: “O fato que o significado das palavras mudam, não somente de era para era, mas de contexto para contexto, é certamente interessante; mas é interessante apenas por que é um incômodo.”

Mas, quando o poeta é mais velho, se ele continuou a escrever, é pelo menos provável que ele irá alcançar um ponto, ou um ponto de parada ou um ponto de virada, no qual ele acha necessário inquirir sobre o sentido do que ele vem fazendo, e agora a questão da dicção poética se torna para ele de extrema importância, não menos que a questão da percepção primária, da própria imaginação, de como o pensamento sempre emergiu (se ele o fez) de um mundo de coisas. Há alguma evidência que poetas alcançando esse ponto – eu penso, por exemplo, em Yeats, Valéry, Stevens – podem sentir agudamente seu desejo por um treinamento filosófico formal, de modo que eles abandonem a própria poesia em favor desse estudo. E ainda parece que seu desejo por treinamento formal pode não ser completamente uma desvantagem, de modo que qualquer consideração que eles possam expressar sobre o assunto terá, talvez, algo da ironia de Sócrates, que apresenta suas próprias reflexões sobre os nomes e as naturezas dizendo, “Se eu não tivesse sido pobre, eu poderia ter ouvido o curso de cinquenta dracmas do grande Pródico1, que é uma educação completa em gramática e linguagem – essas são suas próprias palavras – e então eu deveria ter sido capaz de responder de uma só vez sua pergunta sobre a correção dos nomes. Mas, na verdade, eu ouvi somente o curso de um dracma, e portanto eu não sei a verdade sobre tais assuntos.” (Cratylus, 384b).


Esse desenvolvimento da questão da dicção poética no poeta individual, como se fosse um exercício básico sobre questões de vida e morte, mostra uma correspondência estranha e sugestiva como uma parte do curso de poesia em Inglês. Pode-se dizer que na juventude de nossa poesia a imaginação era misteriosa, mas não problemática, enquanto, posteriormente, por volta da época da Revolução Francesa, a problemática da natureza da imaginação, a produção explícita de seu mistério, começou a ser a principal preocupação de poetas e até mesmo assunto de suas meditações poéticas; por exemplo, The Prelude, um poema sobre escrever poesia, Milton de Blake ou seu Jerusalem e Grecian Urn Ode de Keats.

No tempo de Shakespeare, como Rosemond Tuve nos ensinou (Elizabethan and Metaphysical Imagery), a dicção poética era raramente distinguida como uma questão em si, mas pertencia ao estudo da retórica, a produção de tropos e distinção de figuras, e era aprendida tanto por poetas, quanto por outros homens, de mestres-escola e na escola de gramática. Conscientemente, analisando os expedientes da fala, o estudante aprendia as receitas apropriadas à produção de efeitos particulares, de grandeza, violência, doçura, ou qualquer outra coisa. O firme senso comum de propósito é encantadoramente representado por Ben Jonson: Ingenium, “um talento natural e uma natureza Poética em primeiro lugar,” é realmente o primeiro requisito de um poeta, mas todo o resto tem a ver com o domínio consciente da técnica. Exercitatio é um: “Se ele tem sucesso ou não, não lance fora ainda o Quills, nem rabisque o Wainescott, não castigue o pobre Deske, mas traga tudo para a forja, e apresente novamente; torneie-os novamente. Nenhum estatuto de lei do reino ordena você um poeta contra sua vontade; ou o primeiro soldado. Se isso vem, em um ano ou dois, está bom.” Imitatio é outro: “ser capaz de converter a matéria ou Riqueza de outro Poeta para seu próprio uso.” E finalmente está Lectio, “exatidão de estudo e multiplicidade de leitura. … sozinhos não o capacitam a conhecer a História ou o Argumento de um Poema e a descrevê-lo, mas assim dominar a matéria e Estilo, como para manifestar que ele sabe como lidar, colocar, dispor de qualquer coisa com Elegância quando necessário.”

A distância imensa dessa postura para as atitudes mais modernas no estudo da poesia é tão impressionante quanto óbvia; quando Jonson acrescenta que um homem não deve pensar em se tornar um poeta “sonhando que ele tinha estado no Parnaso, ou tendo lavado seus lábios, como eles dizem, em Helicon2,” o estudante moderno pode pensar com um proveitoso encantamento desse alerta em relação a, digamos, Shelley, Baudelaire, Verhaeren, Rilke, e assim por diante.

Nos séculos XVII e XVIII, pareceria que a prosa e a poesia, que tinham sido anteriormente muito próximas em sua escolha de linguagem, estava decisivamente diferenciada uma da outra, e gradualmente surgia um tipo de linguagem especial para a poesia e não admissível na prosa, exceto nas ocasiões mais exaltadas. Essa linguagem dá, historicamente, seu primeiro sentido separável à expressão “dicção poética”. E, por um longo tempo, foi assumido que esse estado de coisas é natural, necessário e razoável; nem os poetas inquiriram muito, porque isso deveria ser assim e não de outro jeito. Quando Pope escreve, “Nós reconhecemos Homero o pai da dicção poética, o primeiro que ensinou aquela linguagem dos Deuses aos homens” (grifos dele), a segunda condição não aparece para ele, embora ela o faça para nós, como exigindo elaboração. Só quando os primeiros historiadores modernos fingiram forçosamente que as pessoas que eles estudavam tinham subitamente aparecido de lugar nenhum e começado a ser “históricas,” então Pope sensivelmente assume que não há razão em fitar a escuridão contida naquela frase sobre a linguagem dos Deuses, e decide, em vez disso, olhar para a dicção de Homero, a qual é algo que ele pode ver.

Mas pode ser que a coisa verdadeiramente “moderna” sobre a era moderna, os séculos XIX e XX, seu traço realmente característico, é o interesse nos inícios, na origem, na etiologia: quando tentamos dizer que algo é – testemunha Darwin, por exemplo, e Freud – nosso modo de fazê-lo é retroceder e falar sobre como algo se tornou do jeito que parece agora. Ou poderia ser dito que com o afastamento da hipótese dos primeiros capítulos do Gênesis, outra mitologia teria que ser suprida, uma mitologia na moderna linguagem científica, apenas para preencher o que começou a aparecer tão escuro às beiras do abismo do tempo.

A grande mudança de consciência, ou autoconsciência, do mundo ocidental que é normalmente datada a partir da Revolução Francesa aparece simultaneamente em literaturas como a do movimento Romântico, ou revoltas; e essa revolta tem por início e fim muito a ver com a dicção poética, no sentido primeiro, ou técnico; é uma revolta contra uma linguagem convencional que precipitou-se para fora das convenções de sentimento e crença. Para Wordsworth, escrevendo em 1800, o termo em si mesmo é uma espécie de insulto: “Também será encontrado nessas peças pouco do que é normalmente chamado de dicção poética; eu sofri muitas dores para evitar isso como outros geralmente sofrem para produzí-la.”

Mas pertence ao entendimento do Romantismo, que você não pode se rebelar meramente contra as técnicas, ou habilidades, parte da poesia, sem se rebelar também contra algo mais profundo e que diz respeito mais genericamente ao humano, a crença sobre o mundo e o lugar da espécie humana no mundo que produziu convenções técnicas que você acha intoleráveis; e essa rebelião, se completamente perseguida, envolve o rebelde fazendo seu próprio mito de criação, sua própria história de como as coisas se tornaram como elas são.

Em um apêndice às suas “Observações Prefixadas à Segunda Edição das Baladas Líricas,” Wordsworth discorre sobre o assunto da dicção poética e seu modo de fazê-lo o leva de volta às primeiras coisas: “Os poetas mais antigos de todas as nações geralmente escreveram com paixão excitada por eventos reais; eles escreviam naturalmente, e como homens: sentindo, enquanto o faziam, que sua linguagem era ousada e figurada.” William Blake, uns poucos anos antes, testemunha de um modo similar: “Os antigos poetas animaram todos os objetos sensíveis com Deuses ou gênios, chamando-os por nomes e adornando-os com as características das florestas, dos rios, das montanhas, dos lagos, das cidades, das nações, e seus sentidos aguçados e numerosos poderiam perceber qualquer coisa.” Um de seus exemplos é Isaías, que é obrigado a falar sobre a visão divina, “Eu não vi nenhum Deus, nem ouvi nada, em uma percepção finita e orgânica; mas meus sentidos descobriram o infinito em todas as coisas. ...”

Sobre esses primeiros e antigos poetas, Barfield tem muito a dizer, o que eu não devo antecipar; é suficiente para chegar a minha presente conclusão, se eu acrescentar que a imitação intelectualizada subsequente da suposta prática dos supostos poetas antigos produz, para Wordsworth, a corrupção da linguagem que se entende por “dicção poética”; e, para Blake, a abstração sistemática, o sacerdócio, o cientificismo, a perda do que é bom da imaginação.

Para os grandes Românticos, então, a dicção poética se torna um assunto de primeira importância, porque além de seus esforços para reformar sua dicção altamente especializada e retroceder, em vez disso, à “natureza”, surge a questão mais profunda da extensão do papel da imaginação como criador do mundo visível e sensível. Para Blake, essa extensão é total: Imaginação é a Salvação. Para Wordsworth, a relação era mais experimental e de equilíbrio, na qual o mundo e o pensamento são mutuamente ajustados um ao outro, uma solução sobre a qual Blake escreveu: “Você não deve me derrubar para acreditar em tal ajustamento e ajustado. Eu conheço melhor e me agrada sua maestria.” Pois ambos, e para seus grandes contemporâneos, a primazia da imaginação era um ponto de considerável ansiedade, demais, porque a visão oposta, a visão de um universo independente e de coisas fatalmente se movendo, a visão nomeada por Alfred North Whitehead como “materialismo científico,” era evidentemente triunfante em impor suas reivindicações sobre as mentes em geral da Europa e da América.

Essa visão continuou triunfante, embora questões perturbadoras sobre suas fundações sejam sempre mais persistentemente levantadas. E na situação da poesia no presente, nos Estados Unidos, aparece como se um surto após outro de “modernismo”, o qual se considera especificamente como anti-romântico, atualmente revela que não é nada além de outra variação em aspectos superficiais do movimento Romântico, enquanto algo submerso e inacabado sobre aquele movimento continua em larga medida intocado. Poesia e crítica, com umas poucas e honrosas exceções, ou desconsideram a questão levantada sobre a imaginação, ou então parecem assumir implicitamente, sem dizer muito, alguma resolução positivista ou behaviorista ou mecanicista sobre isso, e um resultado em particular é aparente: a poesia fascinada pelo falso realismo da razão, encantada pelo mero pitoresco, imposto sobre, Blake teria dito, pela fantasia de um anjo, cujos trabalhos são apenas Analíticos, e assim prevenido, a despeito de todos os clamores e manifestações, de sonhar profundamente ou outra coisa além do sonho comum.

É para o estudante que deseja abrir essa questão da imaginação novamente, para uma sincera exploração, que o livro de Owen Barfield é dirigido.

Howard Nemerov


1Pródico de Ceos, filósofo grego pertencente ao primeiro período sofista, destacava-se nas áreas de retórica, ética e gramática. (N. do T.)
2Rio da Macedônia. (N. do T.)