Essa é uma tradução um tanto apressada de uma das maiores críticas negativas sobre O Senhor dos Anéis. Escrita por ninguém menos que Edmund Wilson, escritor e um dos maiores estudiosos de James Joyce, sua resenha é marcada pela ironia, apelando bastante para o senso comum e consequentemente sem desenvolver uma argumentação muito sólida. Seu texto é demasiadamente marcado por afirmações categóricas, e eu, pessoalmente, não considero um bom trabalho de crítica, não somente por desmerecer a obra de J. R. R. Tolkien, mas por fazer isso sem expandir seus argumentos. De qualquer forma, é uma peça importante dentro da fortuna crítica tolkieniana. Publicado jornal The Nation, a versão original pode ser encontrada aqui.
14 de abril de 1956
Oh, Aqueles horríveis orcs!
Por Edmund Wilson
Em 1937, Dr. J. R. R. Tolkien, um membro de Oxford, publicou um livro para crianças chamado O Hobbit, que teve um imenso sucesso. Os Hobbits são uma raça não muito humana que habita um país imaginário chamado Condado [Shire] e que combina características de certos animais ingleses – eles vivem em tocas como coelhos e texugos – com os traços dos moradores do campo ingleses, abrangendo do rústico ao tweedy (o nome parece um engavetamento de rabbit e Hobbs.) Eles tem elfos, trolls, e anões como vizinhos, e são associados a um mágico chamado Gandalph e uma repugnante criatura aquática chamada Gollum. Dr. Tolkien ficou interessado em seu país de contos de fadas e partiu de sua pequena história para um longo romance, que apareceu, sob o título geral de O Senhor dos Anéis, em três volumes: A Sociedade do Anel, As duas Torres e O Retorno do Rei. Todos os volumes são acompanhados por mapas, e o Dr. Tolkien, que é um filólogo, professor no Merton College of English Language and Literature, equipou o último volume com um aparato acadêmico de apêndices, explicando os alfabetos e gramáticas de várias línguas faladas por suas personagens, e dando genealogias completas e tabelas de cronologia histórica. Dr. Tolkien anunciou que esta sequência – a continuação hipertrófica para O Hobbit – é destinada para adultos, em vez de crianças, e ela tem tido uma retumbante recepção nas mãos de um número de críticos que são, certamente, crescidos em idade. Sr. Richard Hughes, por exemplo, escreveu que nada em tal escala tinha sido tentado desde The Faerie Queen, e que «por extensão de imaginação, ela quase ultrapassa o paralelo.»
«É estranho, você sabe,» diz srta. Naomi Mitchison, «que alguém leve isso tão a sério quanto Malory.» E Sr. C. S. Lewis, também de Oxford, é capaz de superar a todos: «Se Ariosto,» ele retumbantemente escreve, «rivaliza-o em invenção (de fato, ele não o faz), a ele faltaria ainda sua seriedade heróica.» Nem a América ficou para trás. No The Saturday Review of Literature, um Sr. Louis J. Halle, autor de um livro sobre civilização e política externa, responde como se segue a uma senhora, que «diminuindo,» ele diz, «seu pince-nez» – tinha inquirido o que ele via em Tolkien: «O que, cara senhora, esse mundo inventado tem a ver com o nosso? Você pergunta por seu significado – como você pergunta pelo significado de A Odisseia, do Genesis, de Fausto – em uma palavra? Em uma palavra, então, seu significado é 'heroismo.' Ele faz o nosso próprio mundo, mais uma vez, heróico. Que significado mais alto que este é para ser encontrado em qualquer literatura?»
Mas, se alguém for desses tributos para o próprio livro, é provável que fique decepcionado, surpreso, perplexo. O crítico leu a coisa toda para sua filha de sete anos, que passou por O Hobbit incontáveis vezes, começando-o novamente no momento em que o tinha terminado, e cujo interesse foi mantido por seus sucessores mais prolixos. É intrigante pensar, por que o autor deve ter suposto que estava escrevendo para adultos. Existem, com certeza, alguns detalhes, que são um pouco desagradáveis para um livro infantil, mas exceto quando ele está sendo pedante e também chateando o leitor adulto, há pouco em O Senhor dos Anéis acima da cabeça uma criança de sete anos. Ele é essencialmente um livro infantil – um livro infantil que, de algum modo, saiu do controle, desde então, em vez de direcioná-lo ao mercado «juvenil», o autor foi autoindulgente, desenvolvendo a fantasia por sua própria conta; e, nesse ponto deve ser dito, antes de enfatizar suas inadequações como literatura, que o Dr. Tolkien faz poucas reivindicações para seu romance de fadas. Em uma declaração preparada por seus editores, ele explicou que começou a se divertir, como um jogo filológico: a invenção de línguas é o fundamento. As 'histórias' eram feitas mais para prover um mundo para as línguas do que o contrário. «Eu preferiria escrever em 'élfico'.» Ele omitiu, ele diz, no livro impresso, uma boa quantidade da parte filológica; «mas há uma grande quantidade de matéria linguística … incluída ou mitologicamente expressa no livro. Ele é para mim, de qualquer modo, amplamente um ensaio sobre 'estética linguística,' como eu, às vezes, digo às pessoas que me perguntam 'sobre o que é tudo isso.' … Ele não é 'sobre' qualquer coisa além dele mesmo. Certamente, ele não tem intenções alegóricas, gerais, particulares ou tópicas, morais, religiosas ou políticas.» Uma história de fadas superdesenvolvida, uma curiosidade filológica – isso é, então, o que O Senhor dos Anéis realmente é. O caráter pretensioso é tudo da parte dos apaixonados admiradores do Dr. Tolkien, e são essas pretensões que eu atacaria aqui.
O mais ilustre dos admiradores de Tolkien e o mais notável de seus defensores tem sido W. H. Auden. Que Auden é um mestre do verso em língua inglesa e um bem equipado crítico de versos, ninguém, como dizem, irá discutir. É significante, então, que ele comente sobre a má qualidade dos versos de Tolkien – há uma grande quantidade de poesia em O Senhor dos Anéis. O Sr. Auden é aparentemente insensível – através da falta de interesse em outro departamento – para o fato de que a prosa de Tolkien é tão ruim quanto. Prosa e verso estão no mesmo nível de amadorismo professoral. O que eu acredito enganou o Sr. Auden é sua preocupação especial com o tema da Busca [Quest]. Ele escreveu um livro sobre a literatura de Busca; ele experimentou o tema ele mesmo em uma notável sequencia de sonetos; e é esperado que ele faça algo com isso ou até mesmo em uma escala maior. Entretanto – como às vezes acontece com trabalhos que caem no interesse de alguém – ele sem dúvida supervaloriza tanto O Senhor dos Anéis, porque ele lê nessa obra algo que ele pretenderia fazer por si mesmo. É realmente o conto de uma Busca, mas, para este crítico, uma extremamente não gratificante. O herói não tem tentações sérias; não é atraído por encantamentos traiçoeiros, desorientado por poucos problemas. O que nós temos é um simples confronto – mais ou menos nos termos do tradicional melodrama britânico – das Forças do Mal com as Forças do Bem, o vilão distante e hostil com o pequeno e corajoso herói local. Há traços de imaginação: os antigos espíritos das árvores, os Ents, com seus olhos profundos, barbas cheias de galhos, vozes rumorejantes; os elfos, cuja nobreza e beleza são indefiníveis e não completamente humanos. Mas, mesmo esses traços são desajeitadamente manejados. Nunca há muito desenvolvimento nos episódios; você simplesmente continua pegando mais da mesma coisa. O Dr. Tolkien tem pouca habilidade na narrativa e nenhum instinto para forma literária. As personagens falam uma linguagem de livros de histórias que podem ter saído de Howard Pyle, e como personalidades elas não se impõe. Ao fim do romance, eu ainda não tenho um conceito do mago Gandalph (sic), que é uma figura central, nunca sendo capaz de visualizá-lo como por inteiro. Ora, a maior parte das caracterizações, como Dr. Tolkien é capaz de conceber, são perfeitamente estereotipadas: Frodo, o bom e pequeno homem inglês; Samwise, seu servo fiel como um cachorro, que fala como classe baixa e respeitosa, e nunca abandona seu mestre. Essas personagens, que não são personagens, são envolvidas em intermináveis aventuras, cuja pobreza de invenção nelas mostradas é, parece a mim, quase patética. As Forças do Mal estão se aproximando da terra em que os hobbits, os elfos, os ents e os outros Povos Bons vivem, e eles tem que se unir para salvá-la. O herói é um hobbit chamado Frodo, que tomou posse de um anel, que Sauron, o Rei dos Inimigos, quer (essa sugestão erudita a répteis – isso não lhe dá arrepios?). Apesar da negação do autor, a luta pelo anel não parece ter uma importância maior. Esse anel, se alguém continua a carregá-lo, confere poderes especiais sobre esse alguém, mas sente-se que ele se torna cada vez mais pesado; ele manifesta uma influência sinistra sobre o outro, que ele tem de suportar a si mesmo para resistir. O problema é Frodo se ver livre dele, antes que ele sucumba a sua influência.
AGORA, esta situação realmente cria interesse; realmente parece ter possibilidades. Espera-se ansiosamente por um estranho dilema, um novo tipo de escapada por um fio, no qual Frodo, no reino do Inimigo, vai se encontrar meio seduzido a assumir o ponto de vista do inimigo, de modo que o reino de sombras e horrores chegarão a lhe parecer um lugar plausível e agradável, já que ele está dentro desse reino e é forte no poder do anel; e ele por pouco escapa do perigo de se tornar um monstro. Mas esses fantasmas [bugaboos] não são magnéticos; eles são débeis e muito enfadonhos; não se sente que eles tenham qualquer poder real. Os Povos Bons simplesmente dizem «Buu!» para eles. Existem Cavaleiros Negros, de quem todos tem medo, mas que nunca veem nada além de espectros. Há terríveis aves pairando – pense nisso, horríveis aves de rapina! Há orcs nojentos como ogros, que, entretanto, raramente chegam ao ponto de cometer qualquer ato abertamente. Há uma aranha fêmea gigante – uma terrível, rastejante e arrepiante aranha! – que vive em uma caverna escura e come pessoas. O que sentimos falta em todos esses terrores é qualquer traço de realidade concreta. O sobrenatural, para ser efetivo, deve receber algum tipo de solidez, uma presença real, características reconhecíveis – como em Gulliver, como em Gogol, como em Poe; não come aqueles horrores fantasmáticos de Algernon Blackwood, que se mostram tão frustrantes depois da substancialidade das paisagens de livros de viagem, nos quais ele os evoca. Os horrores de Tolkien são semelhantes em sua falta de contato real com suas vítimas, que se dispõe deles como fazemos com os horrores dos sonhos, simplesmente empurrando-os e soprando-os para longe. O mesmo para Sauron, o governante de Mordor (seu próprio nome não tem um som arrepiante?), que concentra em sua pessoa tudo o que está ameaçando o Condado, a sua construção atravessa os três volumes. Ele faz sua primeira, e bem promissora, aparição como um terrível e amarelo olho de fogo visto em um espelho d'água. Mas isso é o mais longe que chegamos. Uma vez que o reino de Sauron é invadido, nós pensamos que vamos encontrá-lo; mas ele ainda permanece nada além de um olho em chamas, inspecionando tudo o que acontece a partir da janela da remota torre negra. Isso pode, obviamente, ser efetivo; mas realmente não é; nós nunca sentimos o poder de Sauron. E o clímax, pelo qual nós temos sido instigados por exatamente novecentas e noventa e nove páginas grandes com letras pequenas, quando chega, mostra-se extremamente plano. O anel é, por fim, perdido por ser jogado em uma cratera de fogo, e o reino de Sauron «tomba» em um terremoto breve e banal, que põe fogo e queima tudo e assim livra o autor de contar o que exatamente havia de tão terrível lá. Frodo chega ao fim de sua demanda, mas o leitor permanece intocado pelas feridas e fadigas de sua jornada. Uma impotência de imaginação parece a mim extrair a seiva de toda a história. As guerras nunca são dinâmicas; as provações não dão a noção de esforço; as belas damas não provocariam uma palpitação; os horrores não machucariam uma mosca.
Agora, como é que esses longos volumes, que parecem a este crítico só uma embromação, evocou tanto respeito como aqueles acima? A resposta é, eu acredito, que certas pessoas – especialmente, talvez, na Grã Bretanha – tem um longo apetite por lixo juvenil. Eles não aceitariam lixo adulto, mas, confrontados com o artigo pré-adolescente, eles retrocedam à fase mental de se encantarem por Elsie Dinsmore and Little Lord Fauntleroy e que parece ter feito de Billy Bunter, na Inglaterra, quase uma figura nacional. Você pode ver isso no tom em que eles caem quando falam sobre Tolkien: eles babam, eles gritam, eles agradam; eles vão além sobre Malory e Spenser – ambos que tem uma graça e uma distinção que Tolkien jamais tocou.
Quanto a mim, se devemos ler sobre mundos imaginários, dê-me o Poictesme de James Branch Cabell. Ele, pelo menos, escreve para pessoas crescidas, e ele não apresenta o drama da vida como uma luta final entre Povos Bons e Goblins. Ele pode cobrir mais terreno em um episódio, que se mantem por apenas três páginas, do que Tolkien é capaz de em um de seus capítulos de vinte páginas, e ele pode criar uma impressão mais inquietante pela referência a alguma coisa do que Tolkien jamais descreveu através toda sua demonologia.