22 de Janeiro de 1956
Resenha do livro O Retorno do Rei.
Em "O Retorno do Rei", Frodo Bolseiro cumpre sua busca, o reino de Sauro é terminado para sempre, a Terceira Era está acabada e a trilogia de J. R. R. Tolkien, "O Senhor dos Anéis", completa. Eu dificilmente me lembro de um livro sobre o qual eu tivesse argumentos tão veementes. Ninguém parece ter uma opinião moderada: ou o consideram uma obra prima do gênero, como eu; ou não podem suportá-lo, e, entre os hostis há alguns, devo confessar, por cujas opiniões literárias eu tenho grande respeito. Uns poucos desses devem ter passado das primeiras quarenta páginas do primeiro capítulo do primeiro volume, no qual a vida diária dos hobbits é descrita; essas são uma comédia leve e comédia leve não é o forte do Sr. Tolkien. Na maioria dos casos, porém, a objeção vai bem mais fundo. Eu só posso supor que algumas pessoas, por princípio, desaprovam as Buscas Heróicas e os Mundos Imaginários, que, eles sentem, não podem ser outra coisa alé de uma leve leitura "escapista". Para eles é muito chocante que um homem como o Sr. Tolkien, o filólogo de língua inglesa que leciona em Oxford, deva desperdiçar esforços tão incríveis em um gênero que, em sua opinião, é frívolo por definição.
A dificuldade em apresentar um retrato completo da realidade reside na lacuna entre a realidade subjetiva, a experiência do homem de sua própria existência, e a realidade objetiva, sua experiência da vida de outros e do mundo. Vida, como eu a percebo em minha própria pessoa, é primariamente uma contínua sucessão de escolhas entre alternativas, feitas para propósitos de curto e longo prazos; quer dizer, as ações que eu realizo, são menos significativas para mim do que os conflitos de motivos, tentações, dúvidas, nos quais elas se originaram. Além disso, minha experiência subjetiva do tempo não é a de um movimento cíclico alheio a mim, mas de uma história irreversível de momentos únicos, que são feitos por minhas decisões.
Para objetificar essa experiência, a imagem natural é a da jornada com um propósito, cercada por acasos e obstáculos perigosos, alguns apenas difíceis, outros ativamente hostis. Mas quando eu observo meus semelhantes, tal imagem parece falsa. Eu posso ver, por exemplo que apenas os ricos e aqueles de férias podem realizar jornada; a maioria dos homens tem que trabalhar em um único lugar a maior parte do tempo.
Eu não posso observá-los fazendo escolhas, somente as atitudes que eles tomam e, se eu conheço bem alguém, eu posso predizer corretamente como ele ira reagir em uma dada situação. Eu observo, tudo muito frequentemente, homens em conflito uns com os outros, guerras e ódio, mas raramente, se muito, uma divisão nítida entre o Bem de um lado e o Mal de outro, embora eu também possa observar que ambos os lados usualmente se descrevam como tal. Se, então, eu tentasse descrever o que eu vejo, como se eu fosse uma camera impessoal, eu não produziria uma Busca, mas um documento "naturalista".
Ambos os extremos, com efeito, falsificam a vida. Existem Buscas medievais que merecem a crítica feita por Erich Auerbach em seu livro "Mímesis":
"O mundo das provas de cavalaria é um mundo de aventura. Ele contém apenas uma série praticamente ininterrupta de aventuras; mais especificamente, não contém nada além dos requisitos da aventura... Com exceção de feitos de armas e de amor, nada acontece no mundo cortês - e até mesmo esses dois são de um tipo especial: eles não eventos ou sentimentos que podem se afastar por um tempo; eles estão permanentemente ligados com a figura do cavaleiro perfeito, eles são parte de sua definição, de modo que ele não pode, por um momento, ficar sem aventuras em armas, nem por um momento sem uma relação amorosa... Suas proezas são feitos de armas, não a "guerra", pois eles são feitos alcançados ao acaso, que não se encaixam em qualquer padrão intencionalmente político.
E há "suspenses" contemporâneos nos quais a identificação do herói e do vilão com políticos da mesma época é desanimadoramente óbvia. Por outro lado, há romances naturalistas nos quais as personagens são meros fantoches do Destino, ou antes, do autor que, a partir de um misteriosos ponto de liberdade, contempla os trabalhos do Destino.
Se, como eu acredito, o Sr. Tolkien teve sucesso maior que qualquer escritor anterior em seu gênero no uso das propriedades tradicionais da Busca - a jornada heroica, o objeto mágico, o conflito entre o Bem e o Mal -, satisfazendo, ao mesmo tempo, nosso senso de realidade histórica e social; deveria ser possível mostrar como ele teve sucesso. A princípio, nenhum escritor anterior, que eu saiba, criou um mundo imaginário e uma história fictícia em tantos detalhes. Quando o leitor termina a trilogia, incluindo os apêndices de seu volume final, ele sabe tanto sobre a Terra-média de Tolkien, sua paisagem, sua fauna e flora, seus povos, suas línguas, sua história, seus hábitos culturais, quanto, fora de seu campo especializado, ele sabe sobre o mundo real.
O mundo do Sr. Tolkien pode não ser o mesmo que o nosso: ele inclui, por exemplo, elfos, seres que conhecem o bem e o mal, mas não decaíram, e, apesar de não serem fisicamente indestrutíveis, não sofrem morte natural. Ele é afligido por Sauron, uma encarnação do mal absoluto, e criaturas como Laracna, a aranha monstro, ou os orcs que são corrompidos além da esperança de redenção. Mas esse é um mundo de leis inteligíveis, não de mero desejo; o sentido de credibilidade do leitor não é nunca violado.
Até mesmo o Um Anel, a arma física e psicológica que corrompe qualquer um que ouse utilizá-la, é uma hipótese perfeitamente plausível, a partir da qual segue logicamente a obrigação política de destruí-lo, que motiva a busca de Frodo.
Apresentar o conflito entre o Bem e o Mal como uma guerra da qual o lado bom é definitivamente vitorioso é uma empreitada delicada. Nossa experiência histórica nos conta que o poder físico e, em larga medida, o poder mental são moralmente neutros e efetivamente reais: guerras são vencidas pelo lado mais forte, justa ou injustamente. Ao mesmo tempo, a maior parte de nós acredita que a essência do bem é amor e liberdade, de modo que o Bem não pode se impor pela força sem deixar de ser bom.
As batalhas no Apocalipse e no "Paraíso Perdido", por exemplo, são difíceis de engulir, por causa da associação de duas noções incompatíveis de deidade, de um Deus do Amor que cria seres livres que podem rejeitar seu amor e a de um Deus de Poder Absoluto, contra quem ninguém pode se opor. O Sr. Tolkien não é tão grande escritor quanto Milton, mas nesse caso ele teve sucesso onde Milton falhou. Como leitores dos volumes precedentes irão lembrar, a situação na Guerra do Anel é a seguinte: o Acaso, ou a Providência, colocou o Anel nas mãos dos representantes do Bem, Elrond, Gandalf, Aragorn. Usando-o, eles poderiam destruir Sauron, a incarnação do mal, mas ao custo de tornarem-se seu sucessor. Se Sauron recupera o Anel, sua vitória será imediata e completa, mas, mesmo sem ele, seu poder é maior do que qualquer um que seus inimigos possam colocar contra ele, de modo que, a menos que Frodo tenha sucesso em destruir o Anel, Sauron deve vencer.
Isto é, o Mal tem toda a vantagem, exceto uma: ele é inferior em imaginação. O Bem pode imaginar a possibilidade de se tornar mal - portanto a recusa de Gandalf e Aragorn a usar o Anel - mas o Mal, propositalmente escolhido, não pode mais imaginar algo além de si próprio. Sauron não pode imaginar qualquer motivo exceto a vontade de dominação e medo, de modo que, quando ele descobre que seus inimigos têm o Anel, o pensamento que eles podem tentar destruí-lo nunca entra pela sua cabeça, e seu olho é mantido voltado para Gondor e longe de Mordor e da Montanha da Perdição.
Ademais, seu culto ao poder é acompanhado, como tem que ser, pelo ódio e a ânsia por crueldade: ao saber da tentativa de Saruman de roubar o Anel para si mesmo, Sauron fica tão absorto com raiva que, por dois dias cruciais, ele não presta atenção aos relatos dos espiões das escadas de Cirith Ungol; e quando Pippin é tolo o suficiente para olhar na Palantír de Orthanc, Sauron poderia ter descoberto tudo sobre a Demanda. Seu desejo de capturar Pippin e arrancar a verdade dele o faz perder sua preciosa oportunidade.
As exigências feitas sobre o poder do escritor em um épico tão longo quanto "O Senhor dos Anéis" são enormes e aumantam enquanto o conto se desenvolve - as batalhas precisam se tornar mais espetaculares, as situações mais críticas, as aventuras mais emocionantes - mas eu só posso dizer que o Sr. Tolkien se mostrou a altura delas. Nos apêndices, os leitores irão ter vislumbres aterrorizantes da Primeira e da Segunda Eras. As lendas dessas eras, eu suponho, já estão escritas e eu espero que, tão logo os editores tenham visto "O Senhor dos Anéis" em edição de bolso, eles não manterão o crescente exército de fãs do Sr. Tolkien esperando por muito tempo.
O Sr. Auden é autor de "Nones" e "The Shield of Achilles" entre outros volumes de poesia.
Original disponível em: http://www.nytimes.com/1956/01/22/books/tolkien-king.html
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