Comecei esses dias a tradução de Poetic Diction: A Study in Meaning de Owen Barfield, frequentador eventual do grupo dos Inklings e cujas ideias eram manifestadamente admiradas por ninguém menos que J. R. R. Tolkien. O livro é dedicado à C. S. Lewis que era, na verdade, a figura carismática em torno da qual se reunia o grupo. A obra de Barfield, além dos estudos sobre o significado e da dicção poética, também se volta à origem da linguagem e conta com estudos sobre autores específicos. Que eu saiba, não há nenhuma obra dele traduzida para o português, aliás, as únicas contribuições teóricas dos Inklings - que, aliás, seriam valiosíssimas em nosso meio acadêmico - traduzidas para o português no Brasil é o ensaio "Sobre Histórias de Fadas" de J. R. R. Tolkien e o breve ensaio "Três maneiras de escrever para crianças" de C. S. Lewis. Há ainda uma obra muito interessante intitulada A Experiência de Ler, também de C. S. Lewis, traduzida em Portugal. O que segue é o prefácio à edição estadunidense de Poetic Diction, escrita por Howard Nemerov. Se tudo der certo, pretendo terminar a tradução do livro todo até o final do semestre. A referência completa do livro, aos interessados é:
BARFIELD, Owen. Poetic Diction: a study in meaning. Middletown: Wesleyan University Press, 1973.
BARFIELD, Owen. Poetic Diction: a study in meaning. Middletown: Wesleyan University Press, 1973.
***
PREFÁCIO
Esse livro surgiu na Inglaterra pela primeira vez em
1928 e lá foi reeditado em 1952, com a adição de um novo prefácio
(aqui incluído), que ajudou a especificar a aplicação do argumento
de seu autor às visões sobre o assunto, que naquele intervalo se
tornaram mais explícitas, mais brutais, e mais impensavelmente
aceitas por acadêmicos e leigos simpatizantes do que tinha
previamente parecido possível.
Entre os poucos poetas e professores do meu
conhecimento que conhecem Dicção Poética,
ele tem sido valorizado não apenas como um livro secreto, mas quase
como um livro sagrado; com um certo sentimento de que seus
ensinamentos são muito apropriadamente esotéricos, não como posse
de uns poucos esnobes, mas como algo que poderia facilmente falhar em
ser entendido, até mesmo pelos mais estudados daqueles tolos cujas
bocas se derramariam continuamente, mas cujos ouvidos só serviriam
para propósitos próprios.
Não é para o prefaciador antecipar os argumentos do
livro, os quais o leitor, talvez, já deve estar aprendendo de
primeira mão, abandonando-me em favor de Barfield; talvez o único
prefácio valioso seria um tal como eu vi em um manual de Budismo:
ele disse, em verdade, se você já leu esse tanto, jogue o livro
fora, ele não é para você. Mas pode ser apropriado introduzir à
edição estadunidense do livro de Owen Barfield algumas reflexões
sobre seu assunto, e sobre a situação dessa questão atualmente.
Parece que há dois meios principais de tomar a dicção
poética como objeto de estudo. O primeiro deles é uma matéria
técnica, pertencente à arte da poesia ou, mais especificamente, ao
artesanato da poesia, portanto, de interesse somente aos poetas,
talvez especialmente aos jovens poetas, que aprendem de acordo com
suas naturezas uma certa ousadia ou um certo melindre, pertencentes
ao que é possível e o que é proibido na arte, quando eles primeiro
começam a praticá-la. No presente, por exemplo, o poeta em seu
personagem de pescador não permitirá a si mesmo falar de peixes
como “presa com barbatanas.” Ele se sentiria bobo se o fizesse, e
muito apropriadamente; ele seria bobo se o fizesse.
Mas até mesmo nesse primeiro estágio, uma pequena
reflexão pode levá-lo a perguntar a si mesmo, por quê, se “a
presa com barbatanas” é agora impossível, proibida, fora de
moda, poderia ela já ter estado em voga? Como ela poderia
já ter parecido conveniente, apropriada e – em uma palavra que
levanta de uma vez ainda mais questões que podem ser respondidas –
natural, a qualquer poeta?
Se o poeta possui uma disposição reflexiva e
inquiridora – não há garantia de que isso é poeticamente uma boa
coisa para ele – ele sente muito cedo que uma questão desse tipo,
se a perseguir, leva-lo-á para lugares muito estranhos e até mesmo
perigosos. “Pois,” ele pode dizer para si próprio, “aqui é
minha linguagem, que, todo esse tempo, eu só estive usando como se –
como se – como se o quê? Por que, como se isso fosse natural, como
se as palavras realmente dissessem respeito às coisas, como se as
palavras fossem realmente as “almas” das coisas, suas essências
ou logos, e não, de qualquer forma, os meros rótulos
convencionais como elas tão frequentemente são ditas ser.
Nesse ponto, o primeiro modo de considerar a dicção
poética, como um estudo da técnica, vai além em um segundo, onde o
assunto se torna psicológico, metafísico, e extremamente
problemático. Aqui o poeta, especialmente se ele ainda é jovem,
pode achar melhor abandonar as inquirições em favor de escrever
poemas, enquanto ele ainda é capaz, concordando com algo que
Barfield diz em outra passagem: “O fato que o significado das
palavras mudam, não somente de era para era, mas de contexto para
contexto, é certamente interessante; mas é interessante apenas por
que é um incômodo.”
Mas, quando o poeta é mais velho, se ele continuou a
escrever, é pelo menos provável que ele irá alcançar um ponto, ou
um ponto de parada ou um ponto de virada, no qual ele acha necessário
inquirir sobre o sentido do que ele vem fazendo, e agora a questão
da dicção poética se torna para ele de extrema importância, não
menos que a questão da percepção primária, da própria
imaginação, de como o pensamento sempre emergiu (se ele o fez) de
um mundo de coisas. Há alguma evidência que poetas alcançando esse
ponto – eu penso, por exemplo, em Yeats, Valéry, Stevens – podem
sentir agudamente seu desejo por um treinamento filosófico formal,
de modo que eles abandonem a própria poesia em favor desse estudo.
E ainda parece que seu desejo por treinamento formal pode não ser
completamente uma desvantagem, de modo que qualquer consideração
que eles possam expressar sobre o assunto terá, talvez, algo da
ironia de Sócrates, que apresenta suas próprias reflexões sobre os
nomes e as naturezas dizendo, “Se eu não tivesse sido pobre, eu
poderia ter ouvido o curso de cinquenta dracmas do grande Pródico1,
que é uma educação completa em gramática e linguagem – essas
são suas próprias palavras – e então eu deveria ter sido capaz
de responder de uma só vez sua pergunta sobre a correção dos
nomes. Mas, na verdade, eu ouvi somente o curso de um dracma, e
portanto eu não sei a verdade sobre tais assuntos.” (Cratylus,
384b).
Esse desenvolvimento da questão da dicção poética
no poeta individual, como se fosse um exercício básico sobre
questões de vida e morte, mostra uma correspondência estranha e
sugestiva como uma parte do curso de poesia em Inglês. Pode-se dizer
que na juventude de nossa poesia a imaginação era misteriosa, mas
não problemática, enquanto, posteriormente, por volta da época da
Revolução Francesa, a problemática da natureza da imaginação, a
produção explícita de seu mistério, começou a ser a principal
preocupação de poetas e até mesmo assunto de suas meditações
poéticas; por exemplo, The Prelude, um poema sobre escrever
poesia, Milton de Blake ou seu Jerusalem e Grecian
Urn Ode de Keats.
No tempo de Shakespeare, como Rosemond Tuve nos
ensinou (Elizabethan and Metaphysical Imagery), a dicção
poética era raramente distinguida como uma questão em si, mas
pertencia ao estudo da retórica, a produção de tropos e distinção
de figuras, e era aprendida tanto por poetas, quanto por outros
homens, de mestres-escola e na escola de gramática. Conscientemente,
analisando os expedientes da fala, o estudante aprendia as receitas
apropriadas à produção de efeitos particulares, de grandeza,
violência, doçura, ou qualquer outra coisa. O firme senso comum de
propósito é encantadoramente representado por Ben Jonson: Ingenium,
“um talento natural e uma natureza Poética em primeiro lugar,” é
realmente o primeiro requisito de um poeta, mas todo o resto tem a
ver com o domínio consciente da técnica. Exercitatio é um:
“Se ele tem sucesso ou não, não lance fora ainda o Quills, nem
rabisque o Wainescott, não castigue o pobre Deske, mas traga tudo
para a forja, e apresente novamente; torneie-os novamente. Nenhum
estatuto de lei do reino ordena você um poeta contra sua vontade; ou
o primeiro soldado. Se isso vem, em um ano ou dois, está bom.”
Imitatio é outro: “ser capaz de converter a matéria ou
Riqueza de outro Poeta para seu próprio uso.” E finalmente está
Lectio, “exatidão de estudo e multiplicidade de
leitura. … sozinhos não o capacitam a conhecer a História ou o
Argumento de um Poema e a descrevê-lo, mas assim dominar a matéria
e Estilo, como para manifestar que ele sabe como lidar, colocar,
dispor de qualquer coisa com Elegância quando necessário.”
A distância imensa dessa postura para as atitudes mais
modernas no estudo da poesia é tão impressionante quanto óbvia;
quando Jonson acrescenta que um homem não deve pensar em se tornar
um poeta “sonhando que ele tinha estado no Parnaso, ou tendo lavado
seus lábios, como eles dizem, em Helicon2,”
o estudante moderno pode pensar com um proveitoso encantamento desse
alerta em relação a, digamos, Shelley, Baudelaire, Verhaeren,
Rilke, e assim por diante.
Nos séculos XVII e XVIII, pareceria que a prosa e a
poesia, que tinham sido anteriormente muito próximas em sua escolha
de linguagem, estava decisivamente diferenciada uma da outra, e
gradualmente surgia um tipo de linguagem especial para a poesia e não
admissível na prosa, exceto nas ocasiões mais exaltadas. Essa
linguagem dá, historicamente, seu primeiro sentido separável à
expressão “dicção poética”. E, por um longo tempo, foi
assumido que esse estado de coisas é natural, necessário e
razoável; nem os poetas inquiriram muito, porque isso deveria ser
assim e não de outro jeito. Quando Pope escreve, “Nós
reconhecemos Homero o pai da dicção poética, o primeiro que
ensinou aquela linguagem dos Deuses aos homens” (grifos
dele), a segunda condição não aparece para ele, embora ela o faça
para nós, como exigindo elaboração. Só quando os primeiros
historiadores modernos fingiram forçosamente que as pessoas que eles
estudavam tinham subitamente aparecido de lugar nenhum e começado a
ser “históricas,” então Pope sensivelmente assume que não há
razão em fitar a escuridão contida naquela frase sobre a linguagem
dos Deuses, e decide, em vez disso, olhar para a dicção de Homero,
a qual é algo que ele pode ver.
Mas pode ser que a coisa verdadeiramente “moderna”
sobre a era moderna, os séculos XIX e XX, seu traço realmente
característico, é o interesse nos inícios, na origem, na
etiologia: quando tentamos dizer que algo é – testemunha
Darwin, por exemplo, e Freud – nosso modo de fazê-lo é retroceder
e falar sobre como algo se tornou do jeito que parece agora. Ou
poderia ser dito que com o afastamento da hipótese dos primeiros
capítulos do Gênesis, outra mitologia teria que ser suprida, uma
mitologia na moderna linguagem científica, apenas para preencher o
que começou a aparecer tão escuro às beiras do abismo do tempo.
A grande mudança de consciência, ou autoconsciência,
do mundo ocidental que é normalmente datada a partir da Revolução
Francesa aparece simultaneamente em literaturas como a do movimento
Romântico, ou revoltas; e essa revolta tem por início e fim muito a
ver com a dicção poética, no sentido primeiro, ou técnico; é uma
revolta contra uma linguagem convencional que precipitou-se para fora
das convenções de sentimento e crença. Para Wordsworth, escrevendo
em 1800, o termo em si mesmo é uma espécie de insulto: “Também
será encontrado nessas peças pouco do que é normalmente chamado de
dicção poética; eu sofri muitas dores para evitar isso como outros
geralmente sofrem para produzí-la.”
Mas pertence ao entendimento do Romantismo, que você
não pode se rebelar meramente contra as técnicas, ou habilidades,
parte da poesia, sem se rebelar também contra algo mais profundo e
que diz respeito mais genericamente ao humano, a crença sobre o
mundo e o lugar da espécie humana no mundo que produziu convenções
técnicas que você acha intoleráveis; e essa rebelião, se
completamente perseguida, envolve o rebelde fazendo seu próprio mito
de criação, sua própria história de como as coisas se tornaram
como elas são.
Em um apêndice
às suas “Observações Prefixadas à Segunda Edição das Baladas
Líricas,” Wordsworth discorre sobre o assunto da dicção poética
e seu modo de fazê-lo o leva de volta às primeiras coisas: “Os
poetas mais antigos de todas as nações geralmente escreveram com
paixão excitada por eventos reais; eles escreviam naturalmente, e
como homens: sentindo, enquanto o faziam, que sua linguagem era
ousada e figurada.” William Blake, uns poucos anos antes,
testemunha de um modo similar: “Os antigos poetas animaram todos os
objetos sensíveis com Deuses ou gênios, chamando-os por nomes e
adornando-os com as características das florestas, dos rios, das
montanhas, dos lagos, das cidades, das nações, e seus sentidos
aguçados e numerosos poderiam perceber qualquer coisa.” Um de seus
exemplos é Isaías, que é obrigado a falar sobre a visão divina,
“Eu não vi nenhum Deus, nem ouvi nada, em uma percepção finita e
orgânica; mas meus sentidos descobriram o infinito em todas as
coisas. ...”
Sobre esses primeiros
e antigos poetas, Barfield tem muito a dizer, o que eu não devo
antecipar; é suficiente para chegar a minha presente conclusão, se
eu acrescentar que a imitação intelectualizada subsequente da
suposta prática dos supostos poetas antigos produz, para Wordsworth,
a corrupção da linguagem que se entende por “dicção poética”;
e, para Blake, a abstração sistemática, o sacerdócio, o
cientificismo, a perda do que é bom da imaginação.
Para os grandes
Românticos, então, a dicção poética se torna um assunto de
primeira importância, porque além de seus esforços para reformar
sua dicção altamente especializada e retroceder, em vez disso, à
“natureza”, surge a questão mais profunda da extensão do papel
da imaginação como criador do mundo visível e sensível. Para
Blake, essa extensão é total: Imaginação é a Salvação. Para
Wordsworth, a relação era mais experimental e de equilíbrio, na
qual o mundo e o pensamento são mutuamente ajustados um ao outro,
uma solução sobre a qual Blake escreveu: “Você não deve me
derrubar para acreditar em tal ajustamento e ajustado. Eu conheço
melhor e me agrada sua maestria.” Pois ambos, e para seus grandes
contemporâneos, a primazia da imaginação era um ponto de
considerável ansiedade, demais, porque a visão oposta, a visão de
um universo independente e de coisas
fatalmente se movendo, a visão nomeada por Alfred North Whitehead
como “materialismo científico,” era evidentemente triunfante em
impor suas reivindicações sobre as mentes em geral da Europa e da
América.
Essa visão continuou
triunfante, embora questões perturbadoras sobre suas fundações
sejam sempre mais persistentemente levantadas. E na situação da
poesia no presente, nos Estados Unidos, aparece como se um surto após
outro de “modernismo”, o qual se considera especificamente como
anti-romântico, atualmente revela que não é nada além de outra
variação em aspectos superficiais do movimento Romântico, enquanto
algo submerso e inacabado sobre aquele movimento continua em larga
medida intocado. Poesia e crítica, com umas poucas e honrosas
exceções, ou desconsideram a questão levantada sobre a imaginação,
ou então parecem assumir implicitamente, sem dizer muito, alguma
resolução positivista ou behaviorista ou mecanicista sobre isso, e
um resultado em particular é aparente: a poesia fascinada pelo falso
realismo da razão, encantada pelo mero pitoresco, imposto sobre,
Blake teria dito, pela fantasia de um anjo, cujos trabalhos são
apenas Analíticos, e assim prevenido, a despeito de todos os
clamores e manifestações, de sonhar profundamente ou outra coisa
além do sonho comum.
É para o estudante
que deseja abrir essa questão da imaginação novamente, para uma
sincera exploração, que o livro de Owen Barfield é dirigido.
Howard Nemerov
1Pródico
de Ceos, filósofo grego pertencente ao primeiro período sofista,
destacava-se nas áreas de retórica, ética e gramática. (N. do
T.)
2Rio
da Macedônia. (N. do T.)